terça-feira, março 30, 2010

Conto inacabado - Tentativa II - body talk II

Cristina, numa ausência de boas maneiras, ignorou completamente o resto do corpo do homem largado a seu lado e focou toda sua atenção em seu braço. Algumas vezes pendia a cabeça para um lado, ora para o outro, mordia o canto esquerdo do labio inferior, levantava o sombrolho, como se num esforço múltiplo de um dificil proceso de entendimento. Acompanhando esses trejeitos, um dedilhar repetitivo de uma canção cega.

A conversa deveria estar muito interessante, pensou André, a moça numa concentração só, era toda ouvidos para seu corpo aparentemente falante.
_ E aí? Não aguentando mais de curiosidade, André interrompeu aquele silencio milenar mal educado, dando mostras do desagrado de quem havia sido deixado de fora.
_ Afinal, qual o diagnóstico? O que o meu corpo tem tanto a dizer de uma simples dor no joelho? O tempo que vocês conversaram lembra o reencontro entre velhos amigos, falaram de quê? Politica, cultura?

Cristina, já costumada, deu novamente um daqueles sorrisos de monalisa.
_ Calma, André, vou te falar tudo, assim que terminar.
Cristina terminou, olhou e profetizou - Medo. Simplesmente uma única palavra para mil anos de conversa. Definitivamente, a mulher tinha o poder da sintese.
_ Como é? É dor, e no joelho! Que tipo de fisioterapeuta, osteopata ou sei lá o que vem a ser você é? Diz André em uma voz meio alterada, meio amendrontada, do tipo sem querer ser rude, mas receando ter sido covardemente apanhado.
_ Desculpe-me, talvez devessemos nos apresentar novamente. E, como se tivessem acabado de se conhecer Cristina estende a mão e diz - Prazer, me chamo Cristina, sou amiga do Carlos, trabalho com crianças em uma creche e nas horas vagas me dedico a terapias alternativas de cura. Tenho 38 anos, sou casada e tenho um filho. Prometo que não mordo, não fugi de um hospicio e nem fui abduzida por alieniginas.
André, entre atônito e algum outro sentimento que nao consegue nomear estende a mão, talvez com um ligeiro pesar por saber que a estranha bonita moça era casada. Sempre tivera um fraco pelas estranhas, engraçadas ou talvez originais, não importa, estava divagando ainda segurando a mão da moça.
_ Prazer, diz sem entender nada.
Cristina levanta da cama e anda pelo quarto, como se ensaiando o que iria dizer.

_ André - começa a falar bem calma e pausadamente - a dor no seu joelho está de alguma forma conectada a um sentimento de medo. As emoções ficam impressas em nosso corpo, como se fosse um linotipo. Na verdade, somos como um livro e toda nossa vida está escrita nele. Todos os eventos, medos, mesmo os mais tolos, todas as estórias, estão armazenadas no que chamamos memória celular. Algumas vezes, um evento funciona como se fosse uma chave, a porta se abre e libera o que estava trancado, transformando a emoção passada em memória ativa, no seu caso, o seu aniversário.
- A principio, é meio óbvio, não? aniversário, medo do futuro, medo da vida, medo de se apaixonar... – disse a frase como em um decrescendo musical, a última parte quase de forma inaudivel. Mesmo assim, continuou ela a elucidar o mistério, o seu mistério e a fazer conexões onde a principio só existia a dor de um joelho desarticulado. O discurso vindo de fora feria, verdade mais contundente, feito faca que corta e deixa exposta a ferida.

André, neste instante, como se atingido por um raio deu-se conta que a moça realmente havia falado com seu corpo, e o pior, este o havia entregado da forma mais baixa possível, sem censura. Ficou constrangido, como paciente em maca de consultório aguardando o médico. Havia ficado nú, suas emoções mais caras, pensamentos mais intimos ali expostos, sentiu-se indefeso.

Cristina o chama suavemente - André?
Este a olha num desamparo doído de folha manchada, recem escrita, com tinta fresca. Que outras verdades o aguardavam? Desviou o olhar, buscou apoio no quadro de natureza morta, no arranjo de flores secas e na pequena mancha esquecida da cortina. Apoio negado.
Só, viu-se frente a frente com seus 55 anos e todos os seus medos, conectados a todas suas emoções, aparentemente desarticuladas “...Tempo passado e tempo futuro..., ...que convergem sempre para o tempo presente”.

_ André?
_Sim, responde como se de repente tivesse todas as respostas.
_ Seu corpo pede que você diga pra você mesmo que é seguro se apaixonar. Você consegue, completa Cristina.
André olha para a Cristina e sorri, sorriso de quem compreendeu a mensagem.
Entre o sorriso e um breve momento de cumplicidade, alguém entra e leva Cristina embora. Esta, vai-se com o vento, o mesmo que se incumbe de fechar a porta.

3 comentários:

Anônimo disse...

Ah!! esse vento que leva Cristina, que fecha portas...para onde terá ido Cristina, que portas ela abrirá?
Será que, um dia, o mesmo ou outro vento abrirá aquelea ou outra porta, trazendo Cristina de volta? Ou Cristina e todas as portas pertencem ao vento e, portanto, não há volta?
O medo...os medos...da paixão, de perder o chão, da porta fechar, de Cristina ir (e não voltar), da porta do próprio coração fechar, do fechamento de cada dia, da abertura de cada noite, da dança dos desejos, das fantasias de tocaia...o medo, os medos, homéricos e, paradoxalmente, ridículamente transitórios, como Cristina, André, ventos e portas.
O que permanece? A brevidade da cumplicidade, a linguagem do corpo, os sentimentos vãos, que vêm e vão, os desvãos da alma inquieta, a sede infinita de ser sede de sonhos imortais, a imortalidade da finitude, que nos acompanha e nos deixa desamparados, clamando por um abraço que cale, por algum tempo, o silêncio perturbador da solidão irremediável e fundamental.

ps: moça, menina, bruxa, blogueira, mãe, mulher, poeta - não necessariamente nessa ordem (melhor a desordem) - eu é que agradeço. Louvo a sua tão só existência, tão bela pela determinação da busca, pela íntima relação com a vida, expressa em palavras que fotografam a alma da gente. A você, o meu melhor abraço e minha eterna gratidão.

Patrícia Gonçalves disse...

Moço, já agradeci várias vezes e várias outras agradeço. Seus comentários de longe são melhores que os posts, e não por conta dos elogios, mas pela elegância. Suas palavras dançam, suas palavras abraçam, seduzem. Por favor, não leve como ofensa, eu me casaria com suas palavras!

Anônimo disse...

As palavras não me pertencem (como sempre lhe disse). Elas, portanto, estão, são livres para tudo, inclusive, casar com você.