domingo, novembro 28, 2010

Caminhar seco

Escultor, talha dias e manhãs no chão de pedra, o olhar de ontem no caminho feito de silêncios, seixos ao longo da estrada reverberam o pensar solitário, os cactos mudos compactuam a existência seca de dias quentes, empoeirados, sem sombras. No bar, uma bebida para apagar os rastros de um viver doído, o olhar se perde na mulher de baton borrado, vestida de preto, que dança perdida uma música ausente. Resoluto, jogou o cigarro no chão, levantou-se e saiu pela porta, deixando para trás muito mais que um passado cheio de pó, vagas lembranças e a promessa de um futuro improvável. Vida que segue, seca como uma bebida rascante.

sábado, novembro 20, 2010

Beijo

Ele beijou-lhe a boca como quem come uma fruta madura e lambe o sumo que escorre por entre os dedos. Beijou-lhe tanto, que tirou os lábios, o ar, o dia, o vento, restando somente uma leve lembrança. Quando acabou, levou os dedos à boca em um gesto natural, não de quem busca sentir o torpor da carne, mas de quem testa a própria existência.

domingo, novembro 14, 2010

Vida

Vida que segue tranquila
pedras no caminho somente a lembrar 
o olhar cuidadoso ao detalhe

A flor desabrocha na janela 
feito gato ao sol que beija lânguido a luz quente e doce

Bendita a vida que desce e se derrama
feito gota de êxtase


Morro bêbada a cada manhã
imersa em desvarios senis
precoces de quem burla a existência



sábado, novembro 13, 2010

Em algumas manhãs

De mim sai a faca que rasga
trilhando caminhos
nas dúvidas rubras

angústia da lâmina fria
que aponta a falha,
do peito, a palavra cala

olhar de pai distante
à criança muda,
fere filho mineral

a dor cristalizada
cai em gotas de orvalho
molhando um jardim de ontem, hojes

flores natimortas sem cores.


segunda-feira, novembro 08, 2010

Vida que transborda

"Desenrolou o novelo calmamente e buscava com o olhar o ponto onde poderia haver o nó, puxou toda a lã e assentou pacientemente entre os dentes do pente do tear. A manhã passava tranqüila, assim como seus pensamentos, seus movimentos ritmados pareciam um bailado tramando contra o tempo e os dias gentis. Parou, esticou braços e pernas e olhou pela janela, a manhã cinzenta já ia longe e nem sinal do sol. Deitou um olhar sobre o jardim de lavanda e deixou-se levar pelo perfume, distante e mesmo assim presente percebeu um tom entre os matizes das flores que poderia aplicar e destacar o desenho de sua manta. Ainda olhando pela janela, descontente viu que seu pé de tomates carregado precisava de um esteio. Praguejou baixinho, em um lampejo viu que sua vida se assemelhava a aquele jardim, carecia de novos matizes e de um esteio."

Interessante o exercício de ser possuída pelas palavras, poderia ser um exercício de vidas passadas... Em um abandono elas chegam, sem qualquer pretensão, sem saber previamente o enredo, elas se enfileiram e vão formando uma história. De quem, como, quando, nenhuma pista, simplesmente se apresentam e dão forma a um momento que com certeza deve dizer algo para algum lugar de mim, alguma memória, algum espaço, vida, dimensão que eu tenha ocupado ou então, é meu eu se apresentando para me confortar e dizer que sou muito mais que tudo isto, a vida transborda mesmo quando nem damos conta.

sábado, novembro 06, 2010

Fragmentos


[mariposa perdida de amor
pela luz, se transforma 
em flor de pétalas secas]


[faca na pele alva 
desenha caminhos cinzas 
de seixos mortos]


[perdura no ar a flor 
que insiste a bailar sem vento]



segunda-feira, novembro 01, 2010

Ausência de verbo *

            Neste instante me vejo muda, calada, ausente de palavras e símbolos, perdida de significados. Qualquer instrumento afinado para tocar, descrever o momento. Notas surdas silenciam. Contemplação. Céu escuro pontilhado de estrelas. Infinitude. O ser desperto alça vôo e contempla sua própria eternidade. Mergulha no azul da prússia do universo, viaja a mais longínqua galáxia e traz poeira de estrela no bolso da alma. Quem somos e o que fazemos das nossas culpas, dos remorsos e todos quereres, tudo, tudo se perde neste abraço perfeito, na dobra do corpo que recebe o beijo. O caminho de volta para sempre perdido nas encruzilhadas das curvas, nos declives dos montes e bifurcações. 

         Cavalgada no prado, capim gordura que ondula, cheiro de mato, rocio cedo que umedece a face. O cavalo veloz imprime velocidade e voa no vento. Na corrida urgente carrega cabelos, boca, a mão que afaga a face. Beijos alados, doces, suaves, do sabor da flor, do amor, da paixão que vicia. No céu azul teu olhar na lua branca luzidia.

         Quando a noite se esconde e as estrelas repentinam se apagam, os corpos no caminho se perdem. Na perdição dos sentidos, a respiração trôpega se corta e entrecorta, suspensa lança os corpos em fuga, cúmplices das sombras mudas. Fogem alados os dois aliados, voam alto bem alto, puros e inocentes voltam ao paraíso, de onde foram há muito deportados, e agora retornam, finalmente, perdoados. Parceiros da louca aventura em caminho acidentado. Nau sem porto que resgata o branco da espuma, da onda que finda na praia. Viagem louca, caravana sem pouso, itinerante, de países perdidos e mares distantes. Seres encantados de contos de fadas, habitantes de cavernas e grutas escuras, despertos da hora convidam a celebrar. 

         Não quero voltar, me deixe lá, me abandone ao relento, perdida nas pedras, na areia, abraçada ao tronco da árvore, carvalho em flor. Quero ficar esquecida, esquecida de mim, da vida, perdida neste espaço de tempo nano eterno da minha pequena morte. Ah me deixe morrer, a morte é doce e nela me encontro. 



         Abro os olhos e nos vejo, abraçados, a representação do mais belo, estética divina, pintura, musica e toda poesia. Afinal, compreendo e sorrio tranqüila, agora sei, para este momento o verbo ainda não foi inventado.


P.S - * Reeditado, algumas vezes as emoções ficam preservadas nos textos e, ora e outra, é bom resgatá-los e lembrar que a vida vale muito a pena. Bjs, boa semana