sexta-feira, março 26, 2010

Manhã na praça

Sentou-se à praça como quem não quer nada, como se não houvesse nada a fazer, nem filhos, nem marido ou trabalho. O doce sabor da rebeldia. Estava uma manhã agradável, dessas que convidam a celebrar a vida. Uma decisão acertada.

Nada premeditado, simplesmente aconteceu. Quando subiu as escadas do metrô e foi surpreendida pelo azul do céu, se deixou guiar pelas ruas como quem admira de forma displicente os passantes, as vitrines, a arquitetura dos prédios, os pombos nas igrejas. Inspirou o ar puro da manhã, era turista em sua própria cidade! Nunca havia sido turista em lugar algum, desconhecia tal sensação.

Continuou caminhando até chegar a uma praça. Praça, como tantas outras, de outras ruas, de outros dias, de ontem, mas hoje, embora simplesmente uma praça, era a sua praça. Escolheu cuidadosamente onde sentar, como se o lugar definisse o destino do dia. Sentar ao sol, embaixo da árvore, perto do homem,..., norte, sul, leste, oeste..., nunca fora boa em geografia... Onde sentar..., virou-se, caminhou e sentou-se. Boa escolha, sentar ao sol.

No entanto, ficou nervosa, não sabia o que fazer, como sentir o sol, onde colocar as mãos. Era tão simples, simplesmente ser e estar e deixar acontecer. Tinha que aprender a ser mais espontânea. Tanta coisa a aprender e tantas decisões a tomar, 38 anos. Marido, filho, trabalho.

Estava realmente nervosa, não conseguia decifrar o sentimento. Remetia a algo passado, quando jovem e se preparava para um primeiro encontro. O medo de encontrar o desconhecido, ficar cara a cara com a surpresa do novo, ser desvendada e desvendar. Havia um certo estresse, era como se fosse aguardada, esperada de forma ansiosa por alguém. Cristina, sentada no banco, perdida de si, perdida da vida, ainda não havia se dado conta, de que o encontro, era com ela mesma. Um encontro muito aguardado e sempre adiado.

Remexeu a bolsa, procurando algo, tentando dissimular o crime cometido, o furto de uma manhã de trabalho. Tentou conter a culpa, se lembrou de praticar o exercício que a terapeuta havia ensinado. Respirar, 20 vezes, quatro de forma rápida e curta e uma profunda e longa. Começou, inspirou e expirou, perdeu as curtas, as longas e as contas. Recomeçou e abandonou o exercício. Achava aquilo um saco, sempre perdia a conta e sempre mentia para a terapeuta que estava praticando religiosamente. Divertia-se com a terapeuta, pregando pequeninas mentiras ingênuas sem grandes efeitos, feito menina sapeca.

Estava mais calma, ponderou se era resultado do exercício. Talvez funcionasse mesmo. Inspirou profundamente e, largou o corpo. Bem melhor. Estirou o pescoço para trás, deixou a cabeça pender de forma lânguida sobre o encosto do banco e se ofereceu sem pudor ao sol. Recebeu em troca um cálido beijo de amante novo. Os cabelos deslizaram desnudando a face. Era bonita. Há quanto tempo não percebia o calor do sol na pele, hhumm... como era gostoso. Pensou em sexo, há quanto tempo não tinha um orgasmo, pensamento furtivo, tentou se lembrar de cabeça, recorreu aos dedos, deixou pra lá. 38 anos. Olhou a volta receosa, como se alguém pudesse ler seus pensamentos mais íntimos, ora, pensamentos são sempre íntimos, ou não?

5 comentários:

Anônimo disse...

Que delícia ler algo tão excitante, em plena aurora. Excitante, pois li, acreditando (e desejando) que sempre houvesse um parágrafo adiante, pois foi uma leitura saborosa (o que é recorrente, neste espaço).
A mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim...mas algo era inédito, naquele dia. Praça, banco, flores, jardim, mulher, pensamentos, idade...significantes entrelaçados, emixados, algo estranho no ar...
O sol que beija como amante novo (quqndo tudo é surpreendente, mesmo que a surpresa tenha curto prazo de validade), ser turista na própria cidade, a idade, o marido, os filhos, o trabalho...
Quanto trabalho para lidar com o ócio (mesmo o criativo), quanta idade para lidar com a cidade subitamente nova, com o sol inesperadamente amante, com o banco insolitamente branco (como a face da mulher, como seu delito de apenas ser, como o rosto daquele dia improvável, como os restos de dias amontoados na lembrança pálida).
O roubo (melhor furto, pela ausência de qualquer constrangimento) de um dia de trabalho trouxe à Cristina persdpectivas novas, não laborais, que nada acrescentaram ao Produto Interno Bruto, mas que lhe atribuiram uma bruta felicidade interna (toda felicidade é interna, na mesma medida em que todo pensamento é íntimo?). Talvez, haja pensamentos públicos (por deliberada ação de quem pensa, pela vontade incontrolável de compartilhar algo que não quer unicamente para si), bem como felicidades exteriores (daqueles estados de espírito que parecem vir de fora, percorrer todos os aposentos do ser e retornar ao ambiente privado, em rotas alucinantes).
ps: obrigado pela generosidade, ao permitir que outros olhos, corações e mentes, com mais de 38 anos, possam deliciar-se com palavras e reflexões tão belas, capazes de transformar simples manhãs em algo muito maior - se é que existe algo maior que simples manhãs.

Patrícia Gonçalves disse...

Querido anônimo, desculpe-me, mas a essa altura e com esses comentários você só pode ser querido. Interessante, seu comentário tem o mesmo frescor e prazer que a manhã da Cristina.
Acolhi sua sugestão, troquei roubo por furto, ficou muito melhor na frase.
Uma manhã azul pra você e um beijo ensolarado!

Daniela disse...

Lindo, lindo, lindo. Desculpe dizer, amiga, vc nasceu pra isso.... (E pra outras tantas coisas...)

Anônimo disse...

Manhã de maio, de um outono ambíguo, como é peculiar à cidade, ou seja, a juventude do verão que, contudo, traz nas têmporas fios brancos de invernos que passaram e que chegarão, ainda.
Era véspera do aniversário de Cristian. Meio século de vésperas assim, ávidas de sabores novos, grávidas de novidades saborosas.
O cinquentão (jám podia ser considerado como tal, ele mesmo já anunciava ter meio século de vida)caminhou, não com aqueles passos rápidos dos exercícios diários, mas com a paciência que lhe soava estranha, desconhecida, até a grande pedra do final da praia. Escalou, preguiçosamente os degraus naturais da rocha até chegar ao cume da pequena elevação.
Lá, decidiu estender o corpo ainda esguio, meia dúzia de lembranças sem registro civil e um par de olhares errantes. Permaneceu ali, quase imóvel, por algum tempo, que não poderia precisar (e logo ele que acreditava precisar de cada segundo rsrs). Nuvens, embarcações, a brisa aconchegante de final de tarde juntaram-se àquele homem, compondo o cenário de seu (des)caminho. A intenção era abandonar, no alto daquela pedra, algumas coisas pesadas: velhos pensamentos, fantasias esgarçadas, impaciências senis e ansiedades kamikazes. Mas como desfazer-se daquilo que sempre o acompanhara? O que restaria (se é que subsistiria algo)?
Em dado instante, Cristian ergueu o corpo, como quem ergue o copo e brinda e sorri e se regozija com uma conquista.
Desceu a pedra, a pé, aos saltos, saltimbanco, já refeito dos sobressaltos, mais novo do que lá chegara, resgatado pela brisa, pelas nuvens, a bordo da embarcação que o conduziria ao porto (mais alegre que seguro, a ponto de esquecer que era véspera de seu aniversário, pois já não precisaria da âncora que sempre o acompanhara.
Cristian nascera novamente, com um dia de antecedência. E de antecedências ele era um bom conhecedor.
Quem sabe, em algum momento, ele passe por uma praça e encontre lá, num banco, Cristina, às vésperas de seus 39 anos.

Patrícia Gonçalves disse...

Caro, obrigada pelo presente, lindo presente. Gostei muito do texto, parabéns. Legal seu texto falando com meu texto. Tentei copiá-lo para colocá-lo em um post separado, mas não consegui, tive que publicá-lo como comentário.
Mais uma vez, obrigada!